Partilha dos pães: utopia e vocação
No 17º Domingo do tempo comum, a liturgia brinda-nos com uma narrativa bem presente na memória da comunidade cristã e conhecida popularmente como multiplicação dos pães. Nesta nossa conversa vamos optar por chamar de Partilha dos pães. É uma das poucas cenas que aparece nos quatro evangelhos (Mt 14,13-21; Mc 6,30-44; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-15). Em Mt e Mc temos uma segunda versão (Mt 15,32-39; Mc 8,1-10). O que já deixa entrever sua importância para as primeiras comunidades. Comer juntos dentro da tradição judaica era muito mais do que saciar a fome.
Na primeira leitura 2Rs 4,42-44, encontra-se um conjunto de narrativas que podemos chamar de tradição de Eliseu. O 2Rs, um livro talvez não tão conhecido do Antigo Testamento, expressa uma maneira de ver o mundo. Tendo o Êxodo como um ponto central, temos um desenrolar da história de Israel visto a partir da fé que começa no Gn e se conclui com 2Rs. Os livros das crônicas seriam a mesma história de 1Rs e 2Rs narrada a partir de outro ponto de vista. Israel guardou na memória e depois colocou em seus livros uma série de narrativas que a partir das figuras proféticas mostram a maneira como Deus age com seu povo.
Temos no trecho lido neste domingo nas comunidades católicas, a figura de quem orienta a comunidade, o “homem de Deus” (2Rs 4,42). Quem são hoje estas pessoas? Será que você ou eu somos chamados a estar neste lugar? O que temos para “saciar o povo” diante de suas necessidades? Talvez para alguns de nós, pareça matematicamente impossível dar conta desta missão…
A ordem é “repartir”: o que temos, o que somos, o que sabemos, o que sonhamos. Quando a gente reparte o milagre acontece! É bem provável que esta narrativa estivesse tão presente na memória dos judeus no tempo das primeiras comunidades que tenha dado força e forma à memória da multiplicação dos pães.
Na segunda leitura, temos um trecho da carta de Paulo à comunidade de Efésios (Ef 4,1-6). Nesta parte da carta, Paulo anima a comunidade a viver o desafio e a alegria da unidade. A comunhão é graça de Deus e exercício diário. O convite é se comportar segundo a vocação a quem fomos chamados (Ef 4,1). O mês de agosto, que na Igreja no Brasil dedicamos de forma especial à animação vocacional, já está às portas. É tempo de se perguntar: como vai a consciência da vocação ao qual você foi chamado(a)? Suas escolhas estão conectadas com o sentido de sua vida? Isso se transparece em suas atitudes?
O convite feito à comunidade de Éfeso estende-se a nós: tomar consciência dos laços que nos unem: o Senhor, a fé, o batismo (Ef 4,5). Reconhecer que Deus age através de nós e que todos somos servos (Ef 4,6). É a igreja pobre e serva tão sonhada por nós e pelo Papa Francisco. Onde o que nos conecta é a fé que abraçamos e não as estruturas de poder. Onde todos se sentem servos. Onde ninguém quer ser o maior de todos, por que sabe que há “alguém acima de nós”.
Antes de entrarmos no texto que vamos conversar Jo 6,1-15, convém lembrar que a comunidade joanina organiza seu evangelho a partir de 7 sinais. São eles: as bodas de Caná (Jo 2,1-12); a cura do filho de um funcionário (Jo 4,43-54); a cura do paralítico (Jo 5,1-47); a partilha dos pães (Jo 6,1-15); o ato de caminhar sobre as águas (Jo 6,16-70); a cura do cego de nascença (Jo 9,1-41) e a ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-54).
Podemos também entender este relato como uma síntese da atividade de Jesus na Galileia. Como é do estilo de João relacionarmos momentos da vida de Jesus com festas importantes pro povo judeu (Jo 5,1; 6,4; 7,2; 10,22; 19, 14) Aqui temos a menção a páscoa (Jo 6,4).
Em Jo não temos a ceia (Mt 26,20-30; Mc 14,17-26; Lc 22,14-23), o capitulo 6 apresenta a visão da comunidade sobre a eucaristia. Esta é a trama principal do capítulo. A multidão que segue Jesus ainda precisa dar alguns passos para chegar a uma fé madura como veremos no final do capítulo (Jo 6,26.60.66). Talvez como nós?
Nos outros evangelistas, são os discípulos que lembram a Jesus. Aqui é Jesus que toma iniciativa (Jo 6,5-6.10-12). O que mostra uma característica da maneira como a comunidade joanina entende a pessoa de Jesus. Na sequência, temos o diálogo de Jesus com os apóstolos. A pergunta: “onde podemos comprar?” é instigante. O denário era o que um trabalhador ganhava em um dia de trabalho. Duzentos denários era muito dinheiro para gente simples como os discípulos de Jesus. As falas de André e Felipe mostram limitação humana. É preciso ultrapassar a lógica do capital para acolher o apelo do evangelho… Também hoje eu e você precisamos ir além da lógica do capital para sabermos como alimentar as multidões que temos em nossa frente.
Os termos usados na cena fazem alusão à eucaristia, que será o assunto central no decorrer do capítulo. Esta narrativa também está ligada aos milagres de alimentação presentes no antigo testamento (Nm 11,22; Ex 16,16; 2Rs 4,42-44). Outro dado importante é a numeração 12 que esta ligada à perfeição. Na partilha dos pães, temos uma repetição do milagre do Maná, um novo Moisés, um novo êxodo, mas a comunidade joanina quer partilhar sua compreensão que em Jesus vai muito além. Faz-nos pensar numa sociedade onde não haja famintos.
Na compreensão dos judeus do tempo de Jesus na era messiânica, todos seriam saciados. Os judeus esperavam, nos tempos messiânicos, a renovação do milagre do maná. Em Jesus, este tempo realiza-se, mas o messias vem pra mais do que satisfazer o estômago. Aqui encontramos o “nó” das conversas que seguiram ao milagre. Há um entusiasmo (Jo 6,14-15), mas o sentido do sinal ainda não tinha sido entendido. A que o sinal remete-nos? Às vezes, conseguimos entender que o sinal é importante, mas podemos nos equivocar no sentido que lhe atribuímos. Será que estamos sabendo discernir (entender/acolher) o que Deus nos diz através dos sinais que reconhecemos ser dele? O que realmente buscamos?
Permitir que Deus surpreenda-nos é o convite deste domingo. Acolher o jeito de Jesus ser o messias. Acolher o jeito de Jesus agir em nossas vidas e na história. Fazer isso é permitir que o Evangelho mude nosso jeito de pensar, de nos relacionar, de construir a sociedade. Na partilha, Deus se mostra. Na partilha, não há necessitados. Na partilha, a comunhão é testemunhada. Na partilha, encontramos nossa vocação.