Coragem pra ver e pra testemunhar
1a Leitura: 1Sm 16,1b.6-7.10-13a | Salmo 22 | 2a Leitura: Ef 5,8-14 | Evangelho: Jo 9,1.6-9.13-17.34-38
Por Ir. Joilson Toledo, FMS
Continuamos nosso itinerário quaresmal. Seguindo um estilo baseado no catecumenato somos convidados a progressivamente conhecer e testemunhar Jesus. Neste domingo o Evangelho nos testemunha conflitos, desafios e convicções da comunidade joanina e sua compreensão do discipulado de Jesus. Estamos no livro dos sinais no Evangelho de João (Jo 1,19-12,50) e a cada sinal temos em seguida um discurso. A cura do cego de nascença (Jo 9,1-41) é um texto longo e demanda de nós atenção.
Convido você a ler o texto atentamente, prestando atenção nas pessoas (cego, Jesus, fariseus, pais…) e nos cenários (lugar de passagem, piscina de Siloé…). Parece que estamos diante um julgamento? Quem é o cego da estória, afinal? São perguntas que podem nos conduzir no olhar esta leitura. Há um conjunto de imagens que nos ajudam também. Esta oposição luz x trevas tão apreciada pela comunidade joanina também pode nos apresentar orientações importantes para caminharmos pelas estradas do Evangelho…
No texto lido este domingo em nossas comunidades Jesus toma iniciativa de curar uma pessoa cega de nascença (Jo 9, 1), um pouco adiante temos a informação de que era um mendigo (Jo 9, 8). Vivia da ajuda das pessoas. Estava à margem. Dependia das pessoas e é bem provável que não tivesse possibilidades (direito) de dar sua palavra. Depois que Jesus o vê (Jo 9,1) e ele é curado (Jo 9,6-7) ele vai ao centro dos debates (Jo 9, 8-9) e de onde estão as pessoas (Jo 9,13), toma voz (Jo 9,11.17), tem coragem para apresentar suas convicções (Jo 9, 17.22-23), enfrenta as contrariedades (Jo 9,27.30-34)… Não seria isso também um milagre? O encontro com Jesus restitui a vida e a palavra àqueles que as tiveram negadas! A comunidade joanina parece ter feito esta experiência. O texto dá a entender que na pessoa do cego a comunidade diz o que viveu, o que deu o sentido a sua trajetória e o que impulsionou o seu viver. Temos neste episódio uma chave de leitura para o discernimento do momento em que ela vivia (Jo 9, 39) e por isso, ela nos apresenta um caminho para lermos o tempo presente. E eu e você? O encontro com a pessoa Jesus tem mudado a minha e a sua vida? Temos crescido em autonomia, em humanidade, em convicções? Esta é a grande proposta do seguimento de Jesus e que em especial na quaresma somos desafiados a abraçar.
Jesus é a luz (Jo 9, 5), como já dissemos, esta é uma ideia central para a comunidade joanina. A cura do cego é o triunfo da luz sobre as trevas, mesmo que haja dificuldade em reconhecer a luz (Jo 1, 9-10). O convite a seguir Jesus é um convite a ser da luz. Tanto a temática da luz, a piscina e o convite a “se lavar” nos trazem uma alusão ao batismo. O cego é convidado a mergulhar na piscina. Volta e a partir daí consegue ver. A expressão iluminar para a Igreja primitiva tinha a ver com o batismo. No batismo nossos olhos são abertos. Pelo batismo somos convidados a ver o mundo a partir da luz de Cristo. É o convite deste domingo… um domingo profundamente batismal. A narrativa nos oferece a informação que o lugar onde o cego de nascença se banhou era chamado de Piscina de Siloé (significa enviado). Mas quem é o enviado? Davi, conforme sinaliza a primeira leitura (1Sm 16,1b.6-7.10-13a)? Jesus, o cego, eu e você? Na segunda leitura temos orientações sobre atitudes que devem marcar quem vive na luz (Ef 5, 8-14). O chamado é a despertar, tomar consciência, tomar atitude e assim o mestre iluminará (Ef 5, 14). A luz nos ajuda a ver as coisas como elas são. A comunidade joanina apresenta uma controvérsia. Ser cristão, seguir Jesus é ter os olhos abertos por Ele. É ver o mundo como Ele vê. É ver o mundo a partir Dele.
No episódio o milagre ocupa pouco espaço. A maior parte é o debate (ou embate) que ele suscita. Este debate emerge porque a cura feita por Jesus incomoda e desestabiliza a sociedade. A vida plena de alguns pode ser um incômodo para outros. Nada parecido com a sociedade contemporânea. O cego deveria continuar sem voz e a beira do caminho? A comunidade expressa no texto uma vivência. Um incômodo que tem sua origem em sua possibilidade de “ver”. Isso é perigoso para quem vê e para quem o cerca. Reconhecer a realidade é sempre arriscado. Você e eu estamos dispostos a suportar os conflitos que emergem pelo ato de ver? Assumimos as consequências de quem somos chamados a ser?
Uma pergunta importante que precisamos fazer neste tempo quaresmal é: “Como te foram abertos os olhos?” (Jo 9, 10). Eu e você somos convidados a contemplar nosso caminho de discípulos de Jesus… reconhecer o que aconteceu conosco desde a nossa entrada na comunidade… Pense, contemple… Mas para além do reconhecer o caminho feito todo o debate que se desenrola no texto entre fariseus e o homem que havia sido cego nos faz nos questionar: Quem é o cego da história (Jo 9, 16. 24.29)? O que é ser cego? E se trazermos para nossa vida podemos nos questionar: eu enxergo? Me vejo hoje em que lugar, do cego ou dos fariseus?
Com as sucessivas perguntas vai ficando nítido que estamos diante de um julgamento. Seguem-se uma sucessão de interrogatórios (Jo 9, 8-12; 13-17; 18-23; 24-34). E as firmes respostas do cego (Jo 9, 11.17.33). Mas, quem está julgando quem? Um ritmo de tensão crescente vai se dando e o narrador nos oferece um agravante. Era sábado (Jo 9, 14.16)! Para os judeus do tempo de Jesus era proibido trabalhar durante o sábado, mas Jesus fala em realizar as obras daquele que me enviou.
Contudo, em meio a experiência de ver o mundo, ver a partir de Deus e os conflitos que nossas vidas podem trazer, outra pergunta central para este tempo quaresmal é: “tu o que diz daquele que te abriu os olhos?” (Jo 9, 17). O homem que fora cego tem a resposta dele (Jo 9, 17). Qual é a sua? Que lugar Jesus, aquele que você diz que é Deus e que afirma seguir ocupa na sua vida? Quem é ele pra você?
Nos debates e embates que a liturgia de hoje nos apresenta vemos que a comunidade joanina é dura com seus críticos. Como em outros episódios a comunidade marca posição e faz críticas fortes a seus oponentes. Possivelmente no momento em que se finaliza a narração do texto que conhecemos por Evangelho segundo João a comunidade que nos legou esta obra está vivendo um momento de duros conflitos e de perseguição. Entre outros conflitos a expulsão da sinagoga (Jo 9, 34) é provável que estivesse acontecendo no tempo da redação do texto. As sinagogas eram não só lugares de referência religiosa, mas também jurídica para os judeus daquele tempo. Os expulsos não só perdiam do ponto de vista religioso e social, mas ficavam desamparados juridicamente em meio a uma sociedade dominada pelo império romano.
Por isso a comunidade se vê acuada pelas autoridades de seu tempo. É acusada de não enxergar e não saber ler a Lei de Moisés. Talvez eles pensavam: “O que fazer? Confessar a fé ou desertar? “Nesses dias tão estranhos” que vivemos na sociedade brasileira de intolerância, discursos agressivos e preconceituosos e “reformas” que retiram direitos corremos o risco de achar melhor nos calarmos… No texto de hoje temos uma parte da resposta da comunidade a estas situações. Na postura corajosa do cego e na postura temorosa dos demais temos possivelmente posturas que marcavam a comunidade e ao escrever este texto quer nos incentivar a ter coragem de permanecermos firmes em meio as contrariedades
A postura do cego é de impressionar. O que estava à beira do caminho fala na frente de todos. O que antes era cego mais sua sabedoria. Nele reconhecemos numa atitude crescente de tomar posição, de autonomia. Esta é uma marca do seguimento de Jesus. Segui-lo nos faz crescer em autonomia. O seguimento de Jesus é sempre crescimento na autonomia. Assim temos uma referência para pensar como estamos no caminho do discipulado: eu e você estamos crescendo em autonomia, em tomada de posição e em assumir as consequências de nossas escolhas? Ou como os fariseus aqui apresentados vamos construindo perguntas e questões para não enxergar o que está a nossa frente?
Há no texto um progressivo aproximar-se de Jesus em paralelo a negação dos fariseus. Cabe aos discípulos de Jesus darem passos gradualmente, mergulhar no mistério do seu amor, dom que nos abre os olhos e dá coragem. Mesmo em meio às contrariedades, vale a pena viver o que Dom Pedro Casaldáliga poetizou tão bem: “Ser o que se é, falar o que se crê, crer no que se prega, viver o que se proclama até as últimas consequências.” Que este tempo quaresmal nos ajude a viver este caminho.