Transfigurar, desfigurar e reconfigurar
Por Roneide e Wellington Moreira
Sabemos que boa parte do que Jesus falou, fez e ensinou não chegou até nós, após mais de dois mil anos (Jo 21,25). Contudo, o essencial e principal de sua mensagem foi dado a nós conhecer: o amor (Mc 12, 28-34; Jo 15, 9-13; 1 Jo 4, 16). Assim, não há lacunas na revelação divina realizada através da encarnação da Palavra em nosso meio. O que conhecemos – pouco ou muito – dessa história é rico mais que o suficiente para a vivência do reino de amor anunciado por Jesus desde o aqui e agora, estendendo-se pela eternidade dos tempos.
Entre as conhecidas experiências vividas por Jesus e seus discípulos, algumas ficaram na memória mais afetiva das primeiras comunidades cristãs, sendo contadas e recontadas, compartilhadas, comentadas e “co-memoradas” inúmeras vezes, geração em geração.
O segundo domingo da quaresma deste ano (B) traz um desses momentos inesquecíveis experimentados pelos primeiros discípulos: a transfiguração de Jesus (Mc 9, 2-10). O evento foi tão importante e impactante que, por meio da tradição, chegou a praticamente todas as comunidades do primeiro século. Tanto que está presente no relato dos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas).
Passado todo esse tempo, chegamos à era das imagens, dos sentidos. Views e likes são os novos sonhos de consumo. As sensações e estímulos são supervalorizados. Tudo tem que ser mais fácil, rápido, acessível, de pronto, fest food. Estas, entre outras palavras, estão na ordem do dia de boa parte da juventude, mas não só dela.
Nesse contexto, onde todos, jovens e adultos, são levados a caminhar no ritmo acelerado da máxima produtividade e eficiência, a competitividade e o descarte são lados da mesma moeda. Ou você é útil para fazer a roda do mundo capitalista girar, ou você é descartado.
Entender o milagre da transfiguração na configuração atual da realidade requer um pouco mais de tempo. Exige o “parar” para escutar e degustar. Necessita do “sentar” para refletir, descobrir e “co-municar”. Aqui não cabe a lógica do “tempo é dinheiro”, nem o raciocínio do “melhor custo-benefício”.
Se não for assim, corremos o risco de buscar respostas fáceis e rápidas, usando muitas vezes de concepções mágicas ou fórmulas pré-concebidas, que não nos permitem passar da superficialidade da mensagem.
Quando fama, sucesso financeiro, prestígio e destaque social, especialmente nas redes sociais, passam a ter muito mais relevância do que se percebia no século passado, temos o ambiente propício a reforçar a imagem de Jesus exclusivamente divina, esquecendo que em nenhum momento Ele, uma vez encarnado, deixou de ser humano.
Ficamos na imediata e lógica associação da “transfiguração de Jesus” ao “Cristo glorioso”, aspecto mais evidente no Evangelho de João. Restringimo-nos a evidenciar quase que exclusivamente o Jesus puro, intocado, vitorioso, imbatível, reluzente e vencedor.
De fato, Ele é tudo isso, porém, menos pela transfiguração, e mais pela sua ressurreição e revolução que esta causaria nos corações de seus discípulos pouco tempo depois. Para assimilar melhor esse aspecto, precisamos ultrapassar a superficialidade, atravessar a pele e ir para a epiderme. Usar dos sentidos de maneira mais intensa e profunda.
Ao lermos de forma conjunta o Evangelho (Mc 9, 2-10), o Salmo (116), e as leituras primeira (Gn 22, 2-18) e segunda (Rm 8, 31b-34) deste segundo domingo da quaresma, somos chamados a aumentar nossa fé em Jesus Cristo, a alimentar nossa crença em algo que não vemos e pegamos, mas que existe e é verdadeiro, e animar nossa espera por algo que não sabemos como nem quando, mas que é bom e há de acontecer, ou melhor, já acontece, é próximo.
Foi por essa confiança em Deus que Abraão não hesitou em fazer o impensável sacrifício de seu filho único, resultando em um bom desfecho: uma benção a “todas as nações da terra”.
Paulo reforça essa confiança no Pai ao indagar fervorosamente: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”. Com essa perspectiva, a da fé incondicional em Deus, só bons frutos são esperados se Ele próprio é o nosso intercessor.
O salmo, por sua vez, vai falar para guardarmos essa fé, mesmo em meio ao sofrimento, pois Deus age em nosso meio quebrando os grilhões da escravidão.
É disso que trata o milagre da transfiguração. É um sinal que provoca a fé dos discípulos e que dá esperança para superarem o que viria (sua desfiguração pela paixão e morte), e permitir o gozo do que ocorreria depois (a reconfiguração da vida pela Páscoa: ressurreição e pentecostes). Por meio desse milagre Jesus é declarado, mais uma vez diante de seus discípulos, o Filho amado de Deus e, portanto, deve ser escutado, ou seja, seguido até o fim, custe o que custar.
A transfiguração não deve ser interpretada somente com o que impacta de imediato os olhos (o brilho de sua roupa, ou pilares do judaísmo: a lei e os profetas). Isso tudo é espetacular e grandioso, porém, pode causar a ilusão que seduziu Pedro, que encantado com tanto esplendor, deu-se por contemplado e satisfeito, e quis fincar tenda ali mesmo, no meio do caminho.
Esse milagre é, na verdade, um convite para superarmos a superficialidade e aprofundarmo-nos na experiência mais dolorida e intensa da cruz e ressurreição. Ele não serve para a exaltação do Cristo. Este é humilde, simples e discreto. É avesso a exibições, a espetáculos e a exposições, hoje em dia tão comuns, inclusive em muitas de nossas celebrações e eventos religiosos. Tanto que, acontece na intimidade, entre seus discípulos mais próximos, visando não seus olhos, seus sentidos periféricos, mas o interior de seus corações.
A transfiguração aponta para além do que nossos olhos podem ver e compreender de imediato. Ela não é o fim em si mesma, como erroneamente interpretou Pedro, levado pela emoção. Ela aponta para a ressurreição, para o reino.
Nela antecipa-se o que virá, não para encurtar o caminho, e sim para estimular e encorajar a caminhada. Transfigurando-se, Jesus permite vislumbrarmos a futura chegada, mas antes de chegarmos precisamos desfigurar para, então, reconfigurar.
Assim como Ele, que após a transfiguração foi desfigurado pelo flagelo e a crucificação ao decidir enfrentar o sistema de exploração e exclusão de sua sociedade, hoje nós somos desafiados a enfrentar a violência, as crises ambientais, econômicas e de saúde que assolam o mundo, em especial o Brasil.
Esse enfrentamento costuma deixar marcas que maltratam, desfiguram como ocorreu com o Nazareno. A Irmã Dorothy Stang é um desses exemplos trágicos, entre muitos outros. Por isso só tem sentido se for feito com fé no Filho amado de Deus-Pai. Assim, poderemos contribuir para reconfigurarmos o mundo, aproximando-o da proposta do reino de amor de Jesus, a partir da luta por justiça e paz, e do testemunho de vida de nossas humildes comunidades e pequenos grupos de base.
Roneide e Wellington Moreira são, respectivamente, pedagoga, advogado, e assessores da Pastoral da Juventude da Diocese de Rio Branco, Acre