Adormecidos em morte, haveremos de despertar para a vida

Por Vinícius Borges

            A filha de Jairo havia morrido (Mc 5, 35). Para muitos, não havia esperança. Jesus não dá ouvidos aos desesperançosos que, conta o Evangelho, ainda caçoaram dele (Mc 5, 40). Para aqueles, o leito de morte era o fim. A doença era a única face que os olhos poderiam alcançar.

            Neste momento histórico, quando milhares de pessoas sucumbem à peste e ao descaso assassino, nos encontramos envoltos de tristeza. Como a jovem filha de Jairo, estamos adormecidos em morte. De alguma forma, ao nos vermos paralisados pelas estatísticas, é como se algo em nós também se calasse.

            Falta-nos, talvez, a ousadia de uma mulher enferma que enfrenta a multidão para tocar o Mestre e ser curada (Mc 5, 27). Ou o clamor de Jairo que foi buscar Jesus para salvar a própria filha. Esses personagens entendem que Deus é fonte de vida inesgotável, como aponta o texto do Livro da Sabedoria, na Primeira Leitura (Sb 1,13-15;2,23-24).

            Em uma realidade tão adversa, é como se os gestos de Jairo e da mulher enferma fossem sendo, paulatinamente, apagados de nosso convívio. Há uma aceitação passiva do morticínio. Quando se perde a revolta e a dor, não há busca pela cura. Quando se aceita o infortúnio sem questionar suas razões, justifica-se o mal. Perdemos a capacidade do espanto. A morte já não nos choca mais.

            Vemos mais de duas mil filhas de Jairo adormecerem todos os dias. O que fazemos? Caçoamos de quem chora os mortos? Silenciamos diante da tragédia? Aceitamos como normal os descasos genocidas?

            Caso sejam essas as atitudes, estamos frontalmente em desacordo com a vontade de Deus e seu projeto. Para Jesus, o ideal do Reino é muito claro: há que se lutar e preservar a vida. A cura, processual e dinâmica, vem de nossas atitudes pessoais e comunitárias na luta para que a justiça restaure o Bem Viver.

            O texto da Segunda Leitura fala disso (2Cor 8,7.9.13-15): Deus quer a igualdade. É o jeito de bem relacionarmos em vista de experimentar, em nosso meio, a dádiva da saúde que vem da criação divina. Quando há divisão, perseguição, individualismo e ódio, renunciamos ao que o próprio Deus nos oferece de bom grado.

            Sabedores de que precisamos de cura, podemos aproveitar essa liturgia para rezar. De modo simples, tocar as vestes do Mestre e pedir que ele afaste de nós a Covid-19. Podemos suplicar que ele erga dos leitos tantos que, como a adolescente filha de Jairo, parecem adormecer. Porém, para que isso seja possível, é necessário que nós mesmos atendamos a seu chamado.

            O Mestre nos convida à Sua vinha missionária. Quer que nos façamos curadores e lutadores como Ele. Cientes do contraprojeto do mal, devemos ser partícipes dos gestos de cuidado. Atos que começam na derrubada dos sistemas de morte e necropolítica instaurados em nosso meio. Consolos que partirão do enfrentamento profético daqueles que semeiam o caos com seus discursos divisores. Esses não vão prevalecer. Malditos sejam!

            Fiéis ao Deus da vida, haveremos de acordar. E, nesse despertar, cantaremos como o salmista no Salmo 29: “Eu vos exalto, ó Senhor, pois me livrastes e preservastes minha vida da morte!”. Essa é a nossa fé.

Vinícius Borges Gomes é doutorando em Comunicação, mestre em Comunicação e Poder, e jornalista. Está como conselheiro estadual de juventude de Minas Gerais pela PJ.

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