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PROFETISMO NO EXERCÍCIO DO PODER

Será possível manter a radicalidade profética ao assumir um cargo de poder, ou responsabilidade de quem ocupa um posto de mando obriga a renunciar às utopias, como se elas fossem "aventureirismo"? Esta questão ganhou atualidade desde que nossos companheiros e companheiras que assumiram cargos de direção no governo federal, abrandaram o discurso profético e adotaram o pragmatismo político. Não se trata aqui da questão ética, que também merece ser examinada em profundidade, mas sim do profetismo enquanto tal. Qual o seu lugar na política?  

O que caracteriza o profetismo é a capacidade de alguém revelar, por gestos ou palavras, uma verdade oculta a outras pessoas. É bem conhecido o profetismo explicitamente religioso, que faz revelações de tipo "a ninguém chameis de pai sobre a terra, porque um só é vosso Pai, que está nos céus" (Mt. 23,9), mas esta não é a única forma de profetismo. O profetismo que se aplica à política, é aquele que vem como denúncia e condenação – "Ai de vós! (…) Pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e desprezais os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia, a fidelidade." (Mt. 23,23). – ou como anúncio de boa-notícia: "Vinde, benditos de meu Pai (…) porque tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes…"(Mt. 25,34-36). A particularidade do profeta é que ele vê uma realidade oposta àquela que está na experiência comum. Enquanto todos vêem o pobre esmagado e o rico feliz, um plantando uva e o outro bebendo vinho, um construindo a casa e outro morando, o profeta vê e proclama a realidade que está por se manifestar (Is. 65,20-24). Por isso sua mensagem é boa-notícia para quem espera tempos melhores, mesmo não sabendo formular as razões da sua esperança. É essa capacidade de ver a realidade profunda dos fatos históricos, indo além da experiência vivida, que torna o profeta tão importante na política. Ora, perceber o mistério escondido nas realidades humanas é o que define a mística. Por isso, a mística está na base da profecia.

 

Ao falar de mística, não me refiro aqui, é claro, a certas celebrações ou momentos artísticos que o MST equivocadamente chama de "mística", e sim à capacidade de perceber o mistério presente no mundo. Um verso de Péguy diz "varredor que varres a rua, tu varres o Reino do Deus". A mística é justamente esta percepção do sentido transcendente das coisas, a percepção da ação do Espírito de Deus no mundo. No caso da política, a mística nos faz perceber a construção do Reinado de Deus na história humana. Um bom exemplo de mística foi a recente greve de fome de D. Luiz Cappio, que vê no Rio São Francisco não um recurso hídrico, mas uma fonte de vida pela presença de Deus nas suas águas.

 

Praticar o profetismo não é fácil. Muitas vezes temos a intuição profética, sentimos a manifestação do Espírito, percebemos o mistério, mas não temos coragem bastante para comunicar aos outros essa experiência. Para isso é preciso vencer vários medos – da ridicularização, da desqualificação, da marginalização, da perseguição e até da eliminação física. Não por acaso a Bíblia narra tantos episódios de profetas que pretendiam fugir de sua responsabilidade, sendo necessária uma intervenção divina para assumirem sua missão. Hoje não é diferente: o triunfo da economia capitalista e do "pensamento único" que a acompanha, inibe as vocações proféticas na política, porque neles não há lugar para utopias.

 

A dificuldade torna-se ainda maior quando se trata de praticar o profetismo a partir dos lugares de poder. A razão é simples: o poder deslumbra. "Deslumbrar" é, literalmente, ofuscar a vista (do outro) pela emissão de muita luz. Quanto maior é o brilho, menos consegue a pessoa enxergar outra coisa. Por isso se diz que ela fica "deslumbrada", incapaz de perceber outras realidades, especialmente a realidade mistérica que transcende as realidades terrenas. Dificultando a experiência mística, o poder inibe a profecia. É o que provavelmente ocorre com muitos dos que assumem cargo de relevância no governo: o ambiente palaciano, o prestígio do cargo, as demonstrações de apreço de empresários, banqueiros e autoridades internacionais, tudo isso dá brilho aos donos do mundo e ofusca a

força histórica dos pobres.

 

Apesar disso, insisto que não é impossível o gesto profético de quem exerce um poder. Tomo como exemplo a principal mensagem profética da atualidade, poeticamente formulada por Severina, animadora de comunidade no Morro da Conceição, em Recife: "Eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no menor". Esta verdade se opõe ao pragmatismo político que só acredita num mundo melhor se os capitalistas investirem mais… Ali se reproduz nos dias de hoje o antigo embate entre profetismo e mistificação.

 

Também a partir de espaços de poder pode ser afirmada a força histórica dos excluídos e excluídas do mercado. No exercício do poder político, o "orçamento participativo" e os "mandatos populares" são gestos de partilha das decisões com representantes das bases

populares. Nos postos de liderança de movimentos sociais, o profetismo se concretiza no respeito às bases, sem vanguardismo nem manipulação, e pela defesa de sua autonomia. No poder eclesiástico, o profetismo leva à participação de leigos e leigas como membros plenos da Igreja. Outros espaços de poder – econômico, social, cultural – requerem gestos específicos de afirmação profética da capacidade transformadora que vem de quem está nas periferias. A verdade anunciada por meio desses gestos é que são os pobres os condutores da História em direção à justiça, à emancipação humana, à paz e à harmonia planetária.

 

Essa verdade política, invisível aos olhos pragmáticos que não percebem mais do que o avanço triunfante da globalização capitalista, só é percebida por quem faz política com olhar místico.

 

O problema é prático e teórico. Prático, porque se não soubermos alimentar a mística que sustenta o profetismo, ele se tornará palavreado vazio. Teórico, porque o "pensamento único" desqualifica a priori as antigas utopias igualitárias e ataca impiedosamente quem o desafia, ao dar novo impulso àquelas utopias. Não é por acaso que este é o tema a ser debatido em março de 2006, em Vitória, no 5º Encontro Nacional de Fé e Política*.

* Sociólogo, Professor no Mestrado em Ciências da Religião da PUC-Minas e consultor do ISER-Assessoria

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