Amar a Deus sob todas as coisas | 22 de abril – Dia da Terra

Por Ricardo Machado.

A maior lição de cristianismo que já tive na vida ouvi da boca de minha mãe, cuja infância e juventude empobrecida lhe roubaram o direito de estudar e de aprender a ler e escrever: “Assim como são os homens, são as criaturas”, dizia ela com ternura e sabedoria. Mas o que, no fundo, queria dizer essa frase?

Antes de mais nada, devo avisar que não sou católico. Se você tem qualquer restrição a ler um texto sobre Deus de um não católico a hora de abandoná-lo é agora. Com poucos meses de vida um padre se recusou a me batizar, por eu ser filho de mãe solteira (portanto a recusa à Igreja foi menos minha e mais da instituição). Acabei, felizmente, em um congá umbandista sob as benções de um orixá indígena chamado Cacarandi. Pelo bem, pelo mal, minha perspectiva de Deus parte deste lugar. E se algo tenho a dizer a respeito de Deus só sou capaz de dizê-lo desta, e não de outra, forma.

Voltemos à minha infância. Dizer “assim como são os homens são as criaturas” implica retirar o humano do centro do universo. No fundo, no que toca à essência de viver e morrer, o nosso sofrimento não é maior, nem pior, que o sofrimento de qualquer outra criatura. A agressividade selvagem é tão menos violenta que a humana, pois em geral se orienta mais pelo instinto de sobrevivência que pelo ódio. Nunca houve um grupo de animais que tenham matado seus semelhantes sob a nobre (sic) justificativa de terem o praticado “em nome de Deus”.

O salto da Idade Média para a Modernidade – com suas promessas de luzes – foi, hoje somos capazes de perceber melhor, um pulo no abismo. Convertemos Deus na imanência do individualismo, do hedonismo e de um humanismo radicalmente antropocêntrico. E nisso, apesar dos recentes esforços com a Querida Amazônia, Laudato Si’ e Amoris Laetitia, é indesculpável o papel que o cristianismo ocidental, em geral, e o catolicismo, em particular, ocuparam na reificação do ser humano sobre todas as demais criaturas, no qual o Antropoceno é o atestado geológico deste equívoco.

Sem querer cair no ridículo de ser uma espécie de revisor dos mandamentos, caberia, porém, repensar o primeiro deles: “Amar a Deus sobre todas as coisas”. A questão que se impõe não é negá-lo, mas colocar em causa a divisão daquilo que é da ordem da cultura – daquilo que existe mediado pelos interesses e discursos humanos – do que é da ordem da natureza – da biodiversidade de todas as vidas e formas de vida. O deslocamento que a modernidade promoveu ao negar a transcendência de Deus para depositá-la totalmente na imanência dos homens – e o gênero aqui não deve ser entendido como sinônimo de espécie humana – reduziu a potência criadora e criativa de Deus à mais vil das espécies, a única capaz de extinguir a si própria e as demais.

Se o homem – para usar uma terminologia bem ortodoxa – é a imagem e semelhança de Deus e – desta vez recorrendo à heterodoxia familiar – se “assim como são os homens são criaturas”, caberia a nós ver neste planeta ferido a possibilidade de uma ressurreição de nossa casa comum. Portanto, não se trata de amar a Deus sobre todas as coisas, mas amar a Deus sob todas as coisas. A inversão do ponto de vista é o que nos permite sermos cristãos, e vivermos como cristãos, em mundo cujo novo regime climático impõe a mais pesada cruz do calvário contemporâneo às populações empobrecidas. Ver Deus sob todas as coisas não significa colocá-lo abaixo de nada, mas de compreender que Deus, ao contrário dos profetas do apocalipse político e social que se meteu o Brasil, não está acima de tudo, mas no meio de nós.

Que no Dia da Terra, qual um Spinoza perdido em um tempo futuro, sejamos capazes de ver Deus em todas as criaturas.

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