Ditadura nunca mais!

“Pai, afasta de mim este cálice
De vinho tinto de sangue!
 (…) Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado”

Chico Buarque e Gilberto Gil

            A música de Chico Buarque de Holanda, gravada por ele e Milton Nascimento em 1978, não poderia ser mais atual neste momento. Todo dia 31 de março, desde a minha formação como historiador, tenho o costume de escutar uma playlist especial com músicas da época do governo militar. Enquanto ouço cantores como Ivan Lins, Zé Ketti, Caetano, Elis, Nara, Gil e o próprio Chico, muitos sentimentos passam pela minha cabeça.

            O primeiro é quanto à atemporalidade das canções (muitas delas censuradas). Pode parecer incrível escutar uma “Roda Viva” ou um “Vai Passar” nas ruas e praças e ver que elas ainda são usadas nos dias de hoje, mas é aí que mora a preocupação: estamos falando de uma época de muito sofrimento, perseguições, sacrifícios, abdicações. Voltar aos anos de chumbo, em que muitos e muitas jovens foram torturados, mutilados, violentados sexualmente e/ou tiveram seus corpos desaparecidos sem direito a um enterro digno de seus familiares é aterrorizante. Ainda assim, a memória é um caminho necessário.

Tudo se repete, ô maninha, como antigamente,
E o diabo gosta, ô maninha!Arrepia a gente.

Ivan Lins

            É aí que se manifesta um segundo sentimento: a importância de falarmos sobre o período militar. No campo da historiografia, há uma grande disputa, onde um lado quer que sejam valorizados os feitos de generais e coronéis que apoiaram a dita “Revolução de 1964”, enquanto do outro lado, há uma luta para fazer memória de desaparecidas e desaparecidos, resistentes, lutadoras e lutadores anônimos que participaram ativamente do combate à Ditadura. Pois da minha parte, digo com todas as letras: FOI DITADURA, SIM! E neste ano em que a Campanha da Fraternidade reflete o tema “Fraternidade e Educação”, temos como dever fazer memória desta página infeliz da nossa história e refletirmos, enquanto Igreja e sociedade, sobre o que está por trás deste período tenebroso.

“Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a morte não me encontre um dia
Solitário sem ter feito o que eu queria”

Versão – Raul Ellwanger

            Poderia lembrar vários nomes de pessoas que foram torturadas ou mortas por ela, mas prefiro relatar uma parte que muita gente não conhece (ou finge não conhecer). É muito comum, quando falam sobre o período militar, alguém dizer coisas como “se morreu, é porque coisa boa não fez” ou “era bandido ou marginal”. Mas o que dizer dos mais de 8.000 indígenas mortos nesse período? Segundo relatórios da Comissão Nacional da Verdade, foram descobertos, PARCIALMENTE, 20 casos de tortura e genocídio indígena entre 1964 à 1985 – número que talvez seja ainda maior, pois as pesquisas continuam. Tribos inteiras foram dizimadas – como os Parakanãs e os Tapayuna, doenças foram espalhadas, terras foram invadidas. Dentre esses casos, destaca-se a Construção da Transamazônica que, junto com outras estradas, fez parte do Plano Nacional de Integração (PIN), instituído pelo presidente Médici, em 16 de julho de 1970, e que previa que 100 quilômetros em cada lado das estradas a serem construídas deveriam ser destinados à colonização. A intenção do governo era assentar cerca de 500 mil pessoas em agrovilas que seriam fundadas. A Transamazônica foi escolhida como prioridade e, por isso, representou uma verdadeira tragédia para 29 grupos indígenas, dentre eles, 11 etnias que viviam completamente isoladas. Documentos em poder da Comissão da Verdade apontam o extermínio quase que total das etnias Jiahui e Tenharim, cujos territórios estão localizados no sul do Estado do Amazonas, no município de Humaitá.

            Essa data deve servir para fazer memória, para que esse período não se repita na história desse país. As futuras gerações devem saber quanto sangue foi derramado pra que elas pudessem ter uma democracia, um direito de escolha que muitos e muitas não tiveram. E mais do que fazer memória de uma época que, se Deus assim permitir, jamais regressará, é ter um compromisso com o Evangelho, onde nos colocamos como promotores e promotoras da paz, zelosos e zelosas com os outros e as outras, como nos pediu Cristo.

            Portanto, façamos uma prece a Deus por estudantes, padres, religiosos e religiosas, professores e professoras, médicos e médicas, advogados e advogadas e tantas pessoas mais que abriram caminho para a democracia que temos hoje; pelas mães que ainda choram pelos corpos de seus filhos e filhas que ainda não foram encontrados; e por nós, que aqui ficamos nutrindo a coragem necessária para lutar!

“Protege-nos da crueldade
Do esquadrão da morte
Dos prevalecidos
Pai Nosso revolucionário
Parceiro dos pobres
Deus dos oprimidos”

Cirineu Kuhn

Renan Gentil
Coordenador Nacional da PJ pelo Regional Leste 1

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