Entre a intuição e a instituição

A lei, no caso, a Lei Sagrada é o principal pano de fundo das leituras deste 22º domingo do tempo comum do ano “B”. Nele é que se desenrola mais um debate entre Jesus e os fariseus e doutores da Lei, apresentado pelo Evangelho de Marcos (Mc 7,1-8.14-15.21-23).

Para falar da mensagem do Evangelho desse domingo lançamos mão das notas de rodapé da Bíblia Sagrada da Edição Pastoral da Editora Paulus (1990). Na primeira parte do Evangelho, “Jesus desmascara o que está por trás de certas práticas apresentadas como religiosas”, quando os adversários exigiram Dele e de seus discípulos o cumprimento dos rituais “sagrados” de purificação antes das refeições.

De forma direta, Ele acusa-os de hipocrisia por se preocuparem mais com a observação formal e literal das normas religiosas, do que com o efeito prático que elas geram ou deveriam gerar na vida das pessoas.

Os legalistas atuam no âmbito das aparências. Importa o cumprimento da Lei, ou seja, ficar quites perante a comunidade, e ser considerado um cumpridor fiel e estritamente obediente às regras sagradas. O que atualmente podemos chamar de “cidadão de bem”.

Se a observância da Lei ajuda, ou não, aos propósitos do Pai de garantir dignidade a todas e todos, isso não interessa, uma vez cumpridas as obrigações formais, que é, para eles, o principal.

No trecho do Evangelho omitido na leitura de hoje (Mc 7,9-13), o Nazareno fala do Corbã, que “era o voto, pelo qual uma pessoa consagrava a Deus os próprios bens, tornando-os intocáveis e reservados ao tesouro do Templo”. Assim, sob o pretexto de cumprir esse preceito religioso, deixavam de auxiliar seus pais, a quem tinham obrigação de honrar, destinando suas posses à instituição religiosa.

Resultado: “Aparentemente Deus era louvado, mas na realidade os pais ficavam privados de sustento necessário, enquanto o Templo e os sacerdotes ficavam ainda mais ricos”.

Na segunda parte do Evangelho, o Galileu afirma que o “que vem de fora não torna o homem pecador, e sim o que sai do coração”, isto é, da consciência humana, que cria os projetos e dá uma direção às coisas. Jesus anuncia uma nova forma de moralidade, onde os homens podem relacionar-se entre si na liberdade e na justiça. Com isso, aboliu a lei sobre a pureza e impureza (Lv 11), cuja interpretação era o fundamento de uma sociedade injusta, baseada em tabus que criavam e solidificavam diferenças entre as pessoas, gerando privilegiados e marginalizados, opressores e oprimidos”.

Podemos sintetizar assim a mensagem de Jesus no Evangelho desse domingo. Mas, algo mais sutil pode ser extraído dessas Palavras.

Agora no século XXI, embora ainda seja muito difícil pôr plenamente em prática esse e outros ensinamentos, é mais fácil para nós entender o que Jesus quis dizer. Porém, para seus discípulos naquela época, não. Tanto que, depois, quando estavam em um ambiente mais reservado, noutra parte do texto também omitido na leitura de hoje, eles questionaram Jesus sobre o que disse a respeito da purificação (Mc 7,17-20).

Aqui, queremos chamar a atenção para um dilema que muitos de nós sofremos em nossa vivência eclesial: como conciliar intuição e instituição?

Elas entram em conflito? Sim, e não poucas vezes.

O frade franciscano David Raimundo Santos, mais conhecido apenas como frei David, em suas palavras finais num vídeo (live) do Programa “Espiritualidade na Ação”, transmitido no dia 21 de junho de 2021 pelo “You Tube” (canal “Eduardo Moreira”: www.youtube.com/watch?v=nuRRcksAN1A), referindo-se a São Francisco de Assis, afirmou:

“Ele não permitia que a barreira institucional (…) fosse mantida nele. Francisco viveu eternamente o conflito entre intuição e instituição”.

São Francisco, num tempo onde Igreja e Estado era um só, no auge de sua crise entre sua consciência e a conduta socialmente esperada de um cristão da sua época, optou pela intuição, que lhe dizia para retomar um caminho mais próximo à mensagem de Jesus, e despojou-se de tudo, literalmente, inclusive de suas próprias vestes.

Pode-se pensar que os discípulos viviam esse mesmo conflito quando Jesus confrontava as regras judaicas de seu tempo com o amor, ou seja, quando confrontava a forma como essas normas religiosas eram concebidas, de um lado, com as consequências de sua prática no dia a dia do povo, do outro lado.

Eis o dilema dos discípulos que atualizamos para nós: a Igreja, instituição sagrada, edificada pela fé dos próprios apóstolos de Cristo, e inspirada e movida pelo Divino Espírito Santo, por acaso pode, por meio de alguns de seus preceitos, dogmas, tradição ou normas, desviar-se do caminho ao Reino de Amor?

Voltando ao Evangelho, percebemos que Jesus não vive esse dilema. O texto deixa claro que está muito bem resolvido quanto a isso. Ele já escolheu um lado e toma partido. Aplica as leis sagradas só e quando estão de acordo com princípios fundamentados no amor aos pobres, excluídos, injustiçados, aos vulneráveis e mais necessitados.

Se a norma religiosa não serve para gerar verdadeira e integral comunhão, partilha, misericórdia, solidariedade ou dignidade para toda mulher e homem, é sinal de que ela não atende à Palavra Divina, à Vontade do Pai.

Quando alguém põe em prática tal norma sem levar isso em consideração, cabe ouvir a seguinte afirmação de Jesus: “Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens” (Mc 7,8).

Essa é uma boa chave para as demais leituras desse domingo. Sugerimos, ao lê-las, que indaguem: qual o é verdadeiro e essencial mandamento do Mistério Criador que gera, e da Força Transcendente que sustenta toda a criação?

Em nossos dias, o Papa Francisco, seguindo o exemplo do santo de Assis, tem chamado a Igreja para refletir sobre seu jeito de ser e de fazer as coisas, através de propostas como a Economia de Francisco e Clara, os sínodos, entre outras e, mais recentemente, da Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, que ocorrerá em 2021.

Como todos nós, parece também buscar uma solução para o conflito entre intuição e instituição.

Com certeza ele conta com a vocação natural que as juventudes têm para questionar, provocar e inovar na sociedade, e, assim, encontrar soluções mais humanas para nossos problemas socioeconômicos e ecológicos, sem abrir mão do essencial mandamento divino: o amor gratuito, generoso e incondicional.

Roneide e Wellington Moreira são assessores da Pastoral da Juventude da Diocese de Rio Branco, Acre.

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