Jesus é tentado no deserto
1º domingo da Quaresma – Ano A – 05/03/2017
* Por Jaiane Seulim
O evangelho previsto para o 1º domingo da Quaresma é Mateus 4, 1-11, nesse texto Jesus é levado para o deserto pelo Espirito para ser tentado, após jejuar quarenta dias e quarenta noites. Três são as tentações a que Jesus é submetido pelo Tentador (Satanás/Diabo): Jesus devia fazer as pedras virarem pães para provar que ele é Filho de Deus (Mt 4,3); jogar-se pra baixo estando na parte mais alta do Templo para que os anjos viessem salvá-lo (Mt 4,6); e , ainda, o Diabo mostrando-lhe todos o reinos do mundo prometendo entregá-los a Jesus caso Jesus o adorasse (Mt 4,9). Antes de entrarmos nas tentações em si, é importante frisar aqui as simbologias.
Na perícope anterior Jesus é batizado e então já no cap. 4, v.1 é conduzido ao deserto pelo Tentador. Antes de ser levado ao deserto ele ficou quarenta dias e quarenta noites jejuando, aqui há uma ponte com o êxodo e com Moisés, porque Moisés também ficou quarenta dias e quarenta noites sem comer pão e beber água (Ex, 34,28). O número quarenta é o mesmo do de anos que o povo de Deus passou no deserto, sob liderança de Moisés, a caminho da Terra Prometida, depois da libertação da terra do Egito. O povo de saiu das águas do Egito para o deserto, Jesus saiu das águas do batismo para o deserto. Jesus foi levado ao deserto para ser tentado, de modo semelhante o povo de Deus nessa caminhada foi tentado no deserto.
Jesus sentiu fome depois do jejum, o povo sentiu fome em sua caminhada e começou a reclamar sentindo saudade dos peixes e das cebolas do Egito (Nm 11,4-5). Por isso o Tentador diz para Jesus transformar as pedras em pão, se ele é realmente o Filho de Deus. Jesus lembra as palavras da experiência do êxodo, escritas no livro de Dt 8,3b “o homem não vive só de pão, mas de tudo aquilo que sai da boca de Javé”. Jesus era conhecedor da experiência de fé de seu povo, sabia que tipo de messias se esperava, por isso ele não era aceito como messias e era questionado sobre sua filiação divina. O Tentador queria fazer de Jesus um messias espetacular, que faz espetáculo, magia, da pedra faz o pão.[1] E se Jesus não fizesse isso ele não poderia ser o messias esperado. Mas Pedro afirma lá em Mt 16,16 “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”, após a partilha de pães (Mt 15,35-39). Jesus reparte o pão à maneira de viver em comunidade não de fazer espetáculo.
Depois o Diabo levando Jesus à parte mais alta do templo de Jerusalém, continua provocando sua filiação divina “Se tu é Filho de Deus, joga-te para baixo”. O Diabo conhece a escritura, a cita, dizendo que Deus irá por meio de seus anjos salvá-lo. Jesus, contudo remonta a Escritura citando Dt 6,16 “Não tentem a Javé seu Deus”. Nisso consiste confiar em Deus, não colocando-o a prova.
Por fim, o Diabo levando Jesus ao monte mais alto, oferece-lhe todos os Reinos do mundo, se Jesus o adorar. Seguro da fidelidade de Deus, Jesus sabe a quem deve adorar e manda o Satanás embora dizendo, inspirado em Dt 6,13 “Você adorará o Senhor seu Deus e somente a ele servirá”. Jesus tem autoridade para mandar o Satanás embora, logo que o fez o Diabo se retirou.
Jesus é tentado no deserto porque este é o lugar da falta, da margem, onde não há vida, e é no momento em que não temos nada que duvidamos da presença de Deus em nova vida. Isso é ser tentado! Quando não acreditamos no projeto que Deus tem para nós, quando queremos que Deus prove ser o Deus do espetáculo. Aprendemos com Jesus a confiar na palavra que sai da boca de Javé.
A atuação de Jesus o levará e experiência de cruz, morte e ressurreição. E por isso seremos salvas! Vivemos o período da Quaresma nos preparando para o grande momento da fé cristã: a ressurreição! Esse é o fechamento da nossa fé! Jesus ressuscita e nós dá a certeza da realização do Reino de Deus.
As leituras falam do pecado, a primeira Gn 2,7-9; 3,1-7 relata como o pecado entrou no mundo através da desobediência e ambição humana,* a segunda Rm 2,7-9; 3,1-7 afirma que se o pecado entrou no mundo por meio de um só homem, também será um só, Jesus Cristo, por meio de sua obediência que levará a graça e toda a humanidade passará a situação de justiça.
* É claro que sendo teóloga feminista e beirando o 8 de março, dia internacional de luta pelos direitos das mulheres, não podemos deixar assim o texto de Genesis.
Os textos foram escritos, reproduzidos e explicados por homens crentes de que a mulher está em uma condição inferior a eles. Por isso, como no relato bíblico de Gn 2, é por meio de convencimento da mulher que mulher e homem comem o fruto proibido. A hermenêutica feminista nos ensinou a questionar tudo o que está colocado no texto bíblico. A letra, a tradução, quem escreveu, pra quem, o contexto da escrita. De que se trata de Palavra de Deus não duvidamos, mas tal Palavra é escrita por mão de homem, errante, que vacila, que cede as tentações.
Este texto foi utilizado ao longo da história para subjugar mulheres, violentando-as de todas as maneiras, culpando-as pela entrada do mal no mundo. E isso saiu da boca de muitos e muitos teólogos! Acreditem se quiser!
A partir da própria redação desse texto já podemos fazer muitas perguntas. Deus cria céus, terras, mares, luzeiros, plantas e animais. Deus criou o homem (homem, não ser humano) lhe deu todos os animais terrestres e voadores para nomear. Veja bem o poder dado ao homem, o de dar nome! Depois criou a mulher. Se passam dois capítulos, o homem já deu nome a todos os animais que existem e mais um pouco, e então vem a mulher. É no terceiro capítulo que a mulher tem fala pela primeira vez, e ela é colocada justamente cedendo à tentação de comer do fruto proibido. Sabe aquilo tudo que Jesus não fez no texto acima, a mulher fez!
A mulher é colocada como fraca, aquela que cede as tentações, que desviou do mandamento de Deus. Esse texto é um exemplo clássico de uma historiografia patriarcal, perpetuada por homens. Mas Jesus é diferente, ele se relaciona com as mulheres de modo a valorizar suas vidas. A bíblia tem que se converter a Jesus, os teólogos e todos os outros homens que professam a fé cristã. Porque eles caem em tentação, Jesus não.
Se hoje precisamos de um dia de luta para lembrar que mulher também é gente, com paridade de direitos, é porque esses direitos não nos são garantidos socialmente. Estudar, trabalhar, receber o mesmo salário, ser mãe ou não, andar na rua sem ser violentada, não ser violentada dentro de casa, todas essas e muitas outras são as nossas lutas. O direito a vida digna e em abundancia, aquele lá de João 10,10 “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”.
Os textos de hoje nos convidam a iniciar a Quaresma sem tentar a Deus, a palavra de Deus escorre entre as letras humanas, onde entramos contradição e salvação. Que a meditação da liturgia de hoje nos converta e nos fortaleça um pouco mais a resistir às tentações que aparecem nos nossos caminhos. A exemplo de Jesus, que inserido na sua realidade e conhecedor da Palavra de Deus, seguiu retamente o caminho do Senhor. Também que nós estudemos a Palavra de Deus e nos insiramos em nossa realidade, especialmente no meio do povo empobrecido.
[1] Augusto E. Kunert. Reflexão do CEBI em: < https://www.cebi.org.br/2017/03/01/evangelho-da-semana/>.