Marielle Franco, uma flor que ramifica a cada luta das mulheres!

Hoje (14), completamos mais um ano em que o corpo de uma mulher preta, periférica, militante dos direitos humanos e das favelas foi tombado junto com o de Anderson, seu motorista. Marielle havia alcançado uma vaga como vereadora na Câmara Municipal do Rio de Janeiro com mais de 46 mil votos no ano de 2016. Um espaço historicamente ocupado por homens brancos. Tal representatividade política é um dos grandes desafios no que se refere à luta por equidade de gênero. 

Antes de dar continuidade a esse relato, quero falar da minha dificuldade em discorrer sobre a Marielle. Logo em 2018, a PJ da diocese de Nova Iguaçu já me pedira e eu nunca fui capaz… Isso se dá porque conheci a Neguinha, como nós a chamávamos muito antes da vereadora! Esse texto é carregado de memórias de lutas, choros, resistências e muitas alegrias. 

Em 2003, eu ingressei na Pastoral das Favelas, da Arquidiocese do Rio de Janeiro. A Pastoral carrega, até os dias atuais, a profecia de acompanhar favelas ameaçadas de remoção devido à especulação imobiliária, por haver risco de desabamento, por interesse público ou por estar em área de preservação ambiental. A Pastoral existe desde 1977, quando o então arcebispo, o Cardeal Dom Eugênio Salles, reuniu padres e advogados populares para defender a Favela do Vidigal. Naquela época o Papa João Paulo II ao vir ao Brasil, doou seu anel, e com esse gesto contribuiu para que o Vidigal resistisse numa das áreas mais valorizadas do Rio de Janeiro. 

A Pastoral de Favelas, como espaço de mobilização e articulação de movimentos de defesa da moradia no Rio, era o ponto de encontro para organizar estratégias de defesa da moradia. Foi por volta de 2005 que conheci a Marielle, em uma reunião. Ela representava o Movimento Redes da Maré. Combativa, organizada e muito atuante, logo se destacou assumindo compromissos estratégicos na luta por moradia. Naquele momento, pipocavam remoções no Rio de Janeiro, no que chamamos de “Remoção Branca”, ato em torno dos interesses da elite carioca. Enfrentávamos a remoções na área de Jacarepaguá por conta dos interesses imobiliários. 

Em 2007 eu passei a fazer parte do mandato do então deputado estadual Alessandro Molon (na época, membro do Partido dos Trabalhadores – PT) e, Marielle, do mandato do deputado Marcelo Freixo (do Partido Socialismo e Liberdade – PSOL). Como ambos dividiram a presidência da Comissão de Direitos Humanos, nossa relação se tornou mais próxima. Era visita aos presídios cariocas, acompanhamentos das inúmeras chacinas no Grande Rio e a continuidade da Luta pela moradia popular. Embora os mandatos tivessem lá suas diferenças, nós sempre seguimos trabalhando juntas. Marielle dizia: “Neguinha, vamos fazer nossa parte, porque nós sabemos bem a dor do povo!” Mas Marielle era uma educadora, e em um dos muitos cafés que tomamos para partilhar a vida ela me fez uma provocação. “Neguinha, como está seu projeto de estudo? Já decidiu qual faculdade vai fazer? Por que você vai fazer faculdade né? Olha nega, nós mulheres negras somos eternamente marginalizadas. Não nos é dado o direito a sonhar… a única forma de enfrentar esse ciclo de exclusão são os estudos. Provar para eles que somos capazes!”. Eu nunca vou esquecer quão forte, amargo e doce foi aquele café…

Continuando a luta em defesa da moradia, entramos em mais uma grande onda de remoção para obras públicas relacionadas aos megaeventos esportivos que viriam a seguir (Olimpíadas de 2016 e Copa do Mundo de 2014). A luta era grande e naquele momento colocamos nossa vida em risco. Sem muito da tecnologia a que temos acesso hoje, tínhamos toda uma linguagem de segurança para nos protegermos… foram tantas vezes que saímos tarde das comunidades que já perdi as contas. 

Quero destacar um episódio especial: a remoção da Favela do Largo do Campinho (2011), área dominada pela milícia, que sofrera grande intervenção pública para acomodar uma obra do BRT. Além da Defensoria Pública, que cumpria sua função jurídica, revezamos no acompanhamento da comunidade Alexandre, Marielle e eu. A comunidade foi pressionada pela “associação de moradores” local a assinar documentos dando legalidade para a associação assumir a negociação com a prefeitura. Sabíamos que os moradores sairiam sem direito algum caso aceitassem aquela condição. 

Enfrentamos a questão e, em consequência disso, tivemos nossas vidas ameaçadas pela ousadia. Os moradores sempre nos levavam ao ponto de ônibus por caminhos diferentes, numa rede solidária pela defesa das nossas vidas. Naquela época tínhamos tanto medo. Nem passava pela cabeça da Marielle a disputa de um mandato parlamentar, mas o risco de defender a vida sempre foi um alerta. 

Os anos seguiram, eu não estava mais na Pastoral de Favelas e nem na Alerj, minha atuação se restringiu à Baixada Fluminense. Lembro-me muito quando Marielle me escreveu dizendo: “Neguinha, vou me candidatar a vereadora!”. Caraca, imagina a ousadia da nega! Eu já havia me comprometido com outro candidato… fiz uma lista de pessoas que eu acreditava que ela deveria procurar e colaborei na mediação e articulação. 

Quando Marielle foi eleita com um número expressivo de votos, já sabíamos que o incômodo para os coronéis da política seria enorme, mas jamais passou pela cabeça de qualquer um tamanho flagelo. Estivemos juntas em um ato inter-religioso na campanha do segundo turno da eleição para prefeito. Eu a ajudei na condução do ato. Marielle havia se tornado um símbolo! 

Após sua eleição estivemos poucas vezes juntas. Ela sempre me cobrava que eu ainda não conhecia o mandato, eu nunca podia. Nos encontramos em um debate que fazia parte de um espetáculo de combate à violência contra a mulher. Neguinha e eu éramos convidadas. Marielle, com aquela agenda extensa, precisou sair antes do término. Veio do meu lado e disse: “Mana, vou precisar sair. Mas saio tranquila, pois me sinto muito bem representada!” Me deu um beijo no rosto e partiu. Nos vimos ainda algumas vezes antes daquele dia 14 de março. Ela sempre com um sorriso no rosto e com aquelas tiradas que só ela sabia dar. 

Em 14 de março de 2018, não tombaram só uma vereadora. Tiraram a vida de uma mulher feliz, sorridente, cheia de sonhos, engraçada, direta, que não levava desaforo para casa.

Marielle não foi só eleita, ela foi a 5ª mais votada na cidade do Rio de Janeiro. Sua história seria longa. Mas era muita ousadia da nega, né, e na luta racista e de classe merece bala quem ousa enfrentar, e nós mulheres somos o principal alvo. 

Marielle, criada na Igreja Católica, fez crisma, foi catequista, foi de grupo jovem. Adorava perguntar sobre nossa espiritualidade libertadora e profética. Em sua missa de 7º dia, fizemos questão de gritar que seu sangue derramado não seria em vão e nem esquecido. Fico imaginando como ela se sente a cada vez que fazemos memória dela em nossas místicas e orações. 

Marielle foi semente, e como semente segue ramificando e florescendo a cada mulher preta, bissexual, transexual que ocupa um espaço de poder e representatividade! 

Erika Gloria, membro do Iser Assessoria e da Comissão Regional de Assessores da PJ Leste 1 

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