Um pastor para imitar

Por Roneide e Wellington Moreira

A nossa Igreja, profundamente integrada às culturas humanas, desenvolveu-se, como outras denominações religiosas, observando o ritmo cíclico da vida. São os dias, semanas, meses, temporadas, estações, anos… Assim, pedagogicamente, estabeleceu o seu calendário litúrgico obedecendo a um ciclo anual composto por ciclos menores, os tempos litúrgicos.

Agora, estamos comemorando mais intensamente a páscoa, ou seja, a passagem de Jesus que atravessou a morte e ressuscitou para a vida eterna.

Sua ressurreição é o cerne da nossa fé, da Igreja e de toda sua teologia. Por isso, embora o calendário litúrgico dedique este tempo especial para comemorarmos a páscoa, a ressurreição do Cristo é celebrada todos os dias do ano, especialmente em cada missa. Uma vez ressuscitado, está vivo para todo o sempre e encontra-se concretamente em nosso meio e em todas as horas.

Foi com a ressurreição, testemunhada pelos primeiros discípulos, que o dia a dia dos seguidores de Jesus passou a ser uma eterna páscoa. Todos os dias somos chamados a seguir o Cristo. Imitar seus passos fazendo a transição da morte para a vida. É uma passagem diária e constante que o cristão deve fazer.

A cada momento confrontamo-nos com a cultura da morte, e somos desafiados a testemunhar a ressurreição fazendo a opção pela cultura da vida plena para todos.

O Ressurreto, centro de nossa vivência, é um divisor de águas. Quando o conhecemos, deixamos de praticar e apoiar tudo aquilo que ameaça a criação em qualquer de seus aspectos. Passamos a agir em prol dela e contra o “não-amor”. Isto é a ressurreição experimentada no aqui e agora, e que se estende em plenitude para além desta existência.

Mas tal atitude enseja mudança de paradigmas e exige rupturas, pois passamos a ter uma nova visão de mundo e um novo modo de viver com base no exemplo de Cristo. A ressurreição e seu testemunho pelos cristãos neste mundo geram conflitos no dia a dia.

Por tal razão, neste 4º domingo do tempo pascal a primeira leitura traz o trecho do Ato dos Apóstolos (At 4, 8-12) que expõe a perseguição sofrida pelos apóstolos ao praticarem a bondade, curando uma pessoa por meio da fé no Nazareno.

As autoridades religiosas judaicas não conseguiram fazer a passagem que os apóstolos já faziam desde sua experiência com o Ressuscitado. Ainda estavam ligadas à cultura da morte e não reconheciam a promoção do bem, ou seja, a ação pró-vida que os primeiros cristãos faziam em nome de Jesus.

Apesar do risco, os apóstolos não abriram mão do novo jeito de viver que conheceram através da ressurreição. O Salvador tornou-se sua pedra angular, a base do seu existir. Não há mais como voltar à antiga vida, apesar da perseguição feita por aqueles que rejeitaram o Cristo.

A partir do mistério pascal, os apóstolos entenderam que é “melhor buscar refúgio no Senhor, do que contar com os poderosos deste mundo”, como diz o salmo deste domingo (Sl 117). Foi com essa convicção que enfrentaram aquelas autoridades.

Esse salmo começa dizendo que Deus é bom, justamente como começa o Evangelho quando Jesus apresenta-se como o bom pastor (Jo 10, 11-18). E é um pastor diferenciado, sem igual. Para Ele as ovelhas não são mera mercadoria, não são apenas números contabilizados entre perdas e ganhos de uma atividade econômica.

É um pastor que se doa plenamente por essas ovelhas. Capaz de dar sua própria vida por elas. E faz isso de forma espontânea e gratuita. É esse Jesus que os apóstolos conhecem e seguem a ponto de encarar o perigo arriscando-se perante os poderosos.

Logo antes dessa passagem do capítulo 10 do Evangelho de João, Jesus tinha curado o cego de nascença no capítulo 9. Como aconteceu com os apóstolos na primeira leitura, os chefes religiosos não reconheceram essa cura do cego como um sinal divino, um sinal de vida. Optaram pelo sinal da morte, ignorando a graça ocorrida.

A concessão da visão àquele homem, realizada sem o consentimento ou intermédio deles, ameaçava o sistema político e jurídico então vigente. Representava uma ameaça ao poder e influência daqueles religiosos sobre o povo. Então, fizeram uma opção pelo poder e não pela vida. Que opção fazem os governantes de hoje, principalmente em época de pandemia de Covid-19, e de crises econômica e ambiental?

Contrapondo-se a esse modelo que não promove o bem para o povo, mas explora e oprime, Jesus mostra-se como um pastor que ama sem limites as ovelhas. Para o Nazareno, elas não são descartáveis nem números frios e anônimos de uma estatística. São vidas e cada uma delas importa.

Esse é o exemplo do novo ser humano, da nova postura a ser tomada pelos discípulos: agir para libertar os mais vulneráveis dos males que a sociedade impõe sobre eles, enfrentando, sempre que necessário, os mais poderosos ou as autoridades.

Esse desafio está posto há muito tempo, principalmente após o acontecimento da ressurreição. O cristão que tem Jesus como pedra angular não pode ignorar isso.

Trata-se, então, de um desafio diário. A resposta a ele deve ser buscada por cada seguidor de Cristo, mas de forma comunitária, não isoladamente. A fé deve ser partilhada e alimentada nos pequenos grupos. E, a partir destes, desconstruída e reconstruída coletivamente a cada novo problema que encontramos, quando podemos socializar com os irmãos, mesmo em época de distanciamento social, questões sobre a nova vida proposta pelo Evangelho, confrontando-a com a realidade a ser enfrentada.

A dinâmica comunitária e o diálogo entre os irmãos que se amam devem provocar algumas reflexões fundadas nas leituras deste domingo. Temos fé e coragem para testemunhar o Ressuscitado diante de adversidades? Como podemos imitar um pastor tão dedicado que abre mão de seu conforto, segurança, bem-estar e prestígio em prol da luta por um mundo mais justo para todas as ovelhas?

Roneide e Wellington Moreira são assessores da Pastoral da Juventude da Diocese de Rio Branco, Acre.

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